Denúncia anônima e fuga da polícia não justificam invasão de domicílio, diz STJ
- Ivan Morais
- 3 de mar. de 2020
- 13 min de leitura
"Denúncia anônima e fuga da polícia, por si só, não configuram fundadas razões para violação de domicílio por parte da polícia na hipótese de flagrante em crimes de natureza permanente. Com esse entendimento, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento a recurso em Habeas Corpus para declarar ilícitas as provas contra réu condenado por tráfico de drogas e posse de arma de fogo.
A decisão se deu em juízo de retratação e configura mudança de jurisprudência da 5ª Turma, aliando-se ao que decide a 6ª Turma do STJ. A princípio, o colegiado negou a ilicitude da prova porque a inviolabilidade de domicílio, consagrada pelo artigo 5º da Constituição, não é garantida absoluta quando o caso envolve flagrância de delito de natureza permanente.
A defesa então interpôs recurso extraordinário no STF, que foi negado. Em agravo, o ministro Luiz Edson Fachin determinou o retorno dos autos ao STJ para aplicação do Tema 280 do STF, tese fixada em 2015 que exige justamente a existência de fundadas razões, “devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito”.
O acórdão do TJ-SP fundamentou essas razões como: natureza permanente do tráfico, denúncia anônima e a fuga do investigado ao avistar a polícia. Para a 6ª Turma, essas razões são insuficientes, sendo imprescindível prévia investigação policial para verificar a veracidade das informações recebidas, entendimento agora seguido pela 5ª Turma.
"Destaque-se não se está a exigir diligências profundas, mas sim breve averiguação, como, por exemplo, "campana" próxima à residência para verificar a movimentação na casa e outros elementos de informação que possam ratificar à notícia anônima", ressaltou o relator, ministro Ribeiro Dantas".
(Fonte: CONJUR, hhttps://www.conjur.com.br/2020-mar-03/denuncia-anonima-fuga-nao-justificam-invasao-casa-stj) Abaixo segue o voto completo:
RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 89.853 - SP (2017/0247930-4)
RELATOR : MINISTRO RIBEIRO DANTAS
O EXMO. SR . MINISTRO RIBEIRO DANTAS (Relator):
Trata-se de recurso em habeas corpus interposto por (...) contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Em suma, a defesa buscava o trancamento da ação penal por ilicitude das provas colhidas dada suposta violação de domicílio. A Quinta Turma, por meio de acórdão de minha relatoria, negou provimento ao recurso, conforme a seguinte ementa:
"PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES E POSSE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO RESTRITO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL POR ILICITUDE DAS PROVAS. NULIDADE. ESTADO DE FLAGRÂNCIA. DELITOS DE NATUREZA PERMANENTE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CARACTERIZADO. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. Nos termos do entendimento consolidado desta Corte, o trancamento da ação penal por meio do habeas corpus é medida excepcional, que somente deve ser adotada quando houver inequívoca comprovação da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito, o que não se infere na hipótese dos autos. Precedentes. 2. O reconhecimento da inexistência de justa causa para o exercício da ação penal, dada a suposta ausência de elementos a demonstrar a materialidade e a autoria delitivas ou por atipicidade, exige profundo exame do contexto 3. O art. 5º, XI, da Constituição Federal prevê como uma das garantias individuais, conquista da modernidade em contraposição ao absolutismo do Estado, a inviolabilidade do domicílio: "XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial". 4. "O ingresso regular em domicílio alheio depende, para sua validade e regularidade, da existência de fundadas razões (justa causa) que sinalizem para a possibilidade de mitigação do direito fundamental em questão. É dizer, somente quando o contexto fático anterior à invasão permitir a conclusão acerca da ocorrência de crime no interior da residência é que se mostra possível sacrificar o direito à inviolabilidade do domicílio" (REsp 1.558.004/RS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, DJe 31/8/2017). 5. A inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI, da CF) não é garantia absoluta nas hipóteses de flagrância de delito de natureza permanente, como no caso dos autos, em que o recorrente foi flagrado na posse de armas de fogo de uso restrito e tráfico ilícito de entorpecentes, crimes de natureza permanente, elementos que legitimam o acesso, sem mandato judicial, ao domicílio do agente infrator. 6. Não há falar em trancamento do processo por falta de justa causa para o exercício da ação penal, pois já foi proferida sentença condenatória nos autos do processo-crime. Precedentes. 7. Recurso não provido". (e-STJ, fls. 1362-1363).
Interposto recurso extraordinário, o apelo não foi admitido (e-STJ, fls. 1416-1419). Com a interposição de agravo, os autos foram remetidos ao Supremo Tribunal Federal, ocasião em que o eminente Ministro Edson Fachin determinou o retorno do feito para aplicação do Tema 280/STF, conforme decisão de fl. 1455/1457. Assim, a Vice-Presidência desta Corte Superior encaminhou os autos de volta à Quinta Turma para eventual juízo de retratação (e-STJ, fls. 1472-1474).
É o relatório.
VOTO
O EXMO. SR . MINISTRO RIBEIRO DANTAS (Relator):
Conforme relatado, o ponto nodal da impetração consiste em verificar se houve violação de domicílio no caso em apreço, tendo o eminente Ministro Edson Fachin determinado o retorno do feito para possível aplicação do Tema 280/STF:
"Recurso extraordinário representativo da controvérsia. Repercussão geral. 2. Inviolabilidade de domicílio – art. 5º, XI, da CF. Busca e apreensão domiciliar sem mandado judicial em caso de crime permanente. Possibilidade. A Constituição dispensa o mandado judicial para ingresso forçado em residência em caso de flagrante delito. No crime permanente, a situação de flagrância se protrai no tempo. 3. Período noturno. A cláusula que limita o ingresso ao período do dia é aplicável apenas aos casos em que a busca é determinada por ordem judicial. Nos demais casos – flagrante delito, desastre ou para prestar socorro – a Constituição não faz exigência quanto ao período do dia. 4. Controle judicial a posteriori. Necessidade de preservação da inviolabilidade domiciliar. Interpretação da Constituição. Proteção contra ingerências arbitrárias no domicílio. Muito embora o flagrante delito legitime o ingresso forçado em casa sem determinação judicial, a medida deve ser controlada judicialmente. A inexistência de controle judicial, ainda que posterior à execução da medida, esvaziaria o núcleo fundamental da garantia contra a inviolabilidade da casa (art. 5, XI, da CF) e deixaria de proteger contra ingerências arbitrárias no domicílio (Pacto de São José da Costa Rica, artigo 11, 2, e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, artigo 17, 1). O controle judicial a posteriori decorre tanto da interpretação da Constituição, quanto da aplicação da proteção consagrada em tratados internacionais sobre direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico. Normas internacionais de caráter judicial que se incorporam à cláusula do devido processo legal. 5. Justa causa. A entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa prévia conforme o direito, é arbitrária. Não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificará a medida. Os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida. 6. Fixada a interpretação de que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados. 7. Caso concreto. Existência de fundadas razões para suspeitar de flagrante de tráfico de drogas. Negativa de provimento ao recurso." (RE 603616, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 05/11/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-093 DIVULG 09-05-2016 PUBLIC 10-05-2016).
Inicialmente, destaquei, no voto seguido pelo Colegiado, que não haveria afronta à inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI, da CF) pois no caso dos autos "o recorrente foi flagrado na posse de armas de fogo de uso restrito e tráfico ilícito de entorpecentes, crimes de natureza permanente, elementos que legitimam o acesso, sem mandato judicial, ao domicílio do agente infrator". (e-STJ, fl. 1371). Na ocasião, segui precedentes desta Quinta Turma, os quais, por observância ao dever de coerência, reputo importante colacioná-los:
"HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. FLAGRANTE. DOMICÍLIO COMO EXPRESSÃO DO DIREITO À INTIMIDADE. ASILO INVIOLÁVEL. EXCEÇÕES CONSTITUCIONAIS. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. INVASÃO DE DOMICÍLIO PELA POLÍCIA. NECESSIDADE DE JUSTA CAUSA. NULIDADE DAS PROVAS OBTIDAS. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. ILICITUDE CONFIGURADA. ORDEM CONCEDIDA. 1. O art. 5º, XI, da Constituição Federal consagrou o direito fundamental relativo à inviolabilidade domiciliar, ao dispor que "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial". 2. A inviolabilidade de sua morada é uma das expressões do direito à privacidade do indivíduo, o qual, na companhia de seu grupo familiar, espera ter o seu espaço de intimidade preservado contra devassas indiscriminadas e arbitrárias, perpetradas sem os cuidados e os limites que a excepcionalidade da ressalva a tal franquia constitucional exigem. 3. O ingresso em moradia alheia depende, para sua validade e regularidade, da existência de fundadas razões (justa causa) que sinalizem para a possibilidade de mitigação do direito fundamental em questão. É dizer, somente quando o contexto fático anterior à invasão permitir a conclusão acerca da ocorrência de crime no interior da residência é que se mostra possível sacrificar o direito à inviolabilidade do domicílio. 4. O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral, que o ingresso forçado em residência sem mandado judicial apenas se revela legítimo - a qualquer hora do dia, inclusive durante o período noturno - quando amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito (RE n. 603.616/RO, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJe 8/10/2010). 5. A ausência de justificativas e de elementos seguros a legitimar a ação dos agentes públicos, diante da discricionariedade policial na identificação de situações suspeitas relativas à ocorrência de tráfico de drogas, pode fragilizar e tornar írrito o direito à intimidade e à inviolabilidade domiciliar. 6. Tal compreensão não se traduz, obviamente, em transformar a casa em salvaguarda de criminosos, tampouco um espaço de criminalidade. Há de se convir, no entanto, que só justifica o ingresso na moradia alheia a situação fática emergencial consubstanciadora de flagrante delito, incompatível com o aguardo do momento adequado para, mediante mandado judicial, legitimar a entrada na residência ou local de abrigo. 7. Na hipótese sob exame, verifica-se que: a) o acusado empreendeu fuga para o interior de sua residência ao avistar a autoridade policial, que realizava diligência de trânsito de rotina; b) após revista em seu domicílio, foram encontradas substâncias entorpecentes (69,33 g de maconha; 0,4 g de haxixe; 10,1 g de cocaína e 1,5 g de LSD). 8. Em nenhum momento foi explicitado, com dados objetivos do caso, em que consistiria eventual atitude suspeita por parte do acusado, externalizada em atos concretos. Não há referência a prévia investigação, monitoramento ou campanas no local. Também não se tratava de averiguação de denúncia robusta e atual acerca da existência de entorpecentes no interior da residência (aliás, não há sequer menção a informações anônimas sobre a possível prática do crime de tráfico de drogas pelo autuado). 9. A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo paciente, embora pudesse autorizar abordagem policial, em via pública, para averiguação, não configura, por si só, justa causa a permitir o ingresso em seu domicílio, sem seu consentimento - que deve ser mínima e seguramente comprovado - e sem determinação judicial. 10. Em que pese eventual boa-fé dos policiais militares, não havia elementos objetivos, seguros e racionais, que justificassem a invasão de domicílio. Assim, como decorrência da Doutrina dos Frutos da Árvore Envenenada (ou venenosa, visto que decorre da fruits of the poisonous tree doctrine, de origem norte-americana), consagrada no art. 5º, LVI, da nossa Constituição da República, é nula a prova derivada de conduta ilícita. 11. Ordem concedida para determinar o trancamento do processo." (HC 415.332/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 16/08/2018, DJe 21/08/2018);
"AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PENAL. TRÁFICO DE DROGAS E POSSE IRREGULAR DE MUNIÇÕES DE USO PERMITIDO. INVASÃO DOMICILIAR. ATITUDE SUSPEITA. TENTATIVA DE EVASÃO APÓS ABORDAGEM POLICIAL. SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE DISPENSADA DURANTE A FUGA. LICITUDE DA PROVA. VERIFICAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS DO TRÁFICO ANTES DA INVASÃO DOMICILIAR. AGRAVO DESPROVIDO. [...] 3. No caso, os depoimentos dos policiais confirmam que o recorrente, perseguido por se encontrar em atitude suspeita, pouco antes de ser abordado, dispensou na estrada substância entorpecente, e após ser detido, foi até a sua residência com os policiais, tendo sido nela encontradas mais drogas e munições. 4. Vê-se, assim, que havia motivos para os policiais ingressarem na residência do réu, tendo em vista não só a sua atitude suspeita, mas também o fato de que já havia sido identificada a presença de substâncias entorpecentes em seu poder. Dessa forma, as circunstâncias concretas do caso legitimaram a entrada dos milicianos na residência. 5. Ademais, a autorização da genitora do acusado para o ingresso no domicílio reforça a inexistência de violação domiciliar. 6. Agravo regimental desprovido." (AgRg no REsp 1751873/MT, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 27/11/2018, DJe 10/12/2018, grifou-se);
"PROCESSUAL PENAL E PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. PRISÃO EM FLAGRANTE. INVASÃO DE DOMICÍLIO. HIPÓTESE DE FLAGRANTE. PRESENÇA DE JUSTA CAUSA. 1. O gravosa violação do domicílio exige fundadas razões de que um delito esteja sendo cometido, sendo razoável para isso a indicação feita de que os policiais avistaram o paciente, que, ao perceber a aproximação, dispensou ao lado do portão, no chão, cinco porções de maconha, enquanto o corréu Douglas empreendeu fuga para o interior do imóvel, ingressando, assim, no domicílio onde foram apreendidos dinheiro (oitenta e dois reais), em notas diversas, nove porções de maconha, que pesaram sessenta e seis gramas e também uma tesoura, uma faca e plástico filme e um caderno de anotações para contabilidade do tráfico. 2. Habeas corpus denegado." (HC 470.771/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 27/11/2018, DJe 06/12/2018, grifou-se);
"HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO. IMPROPRIEDADE. NULIDADE. PROVAS ILÍCITAS. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. INVASÃO DOMICILIAR. PRISÃO EM FLAGRANTE. CRIME PERMANENTE. FUNDADAS RAZÕES. EXCEÇÃO À INVIOLABILIDADE DE DOMICÍLIO. INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. WRIT NÃO CONHECIDO. [...] 3. Na espécie, a fuga de suspeitos em direção à residência, os quais possuíam arma de fogo e rádios comunicadores, bem como o relato de usuário de drogas, confirmando que ali funcionava um local de venda e consumo de drogas, legitimou a entrada dos policiais no domicílio, ainda que sem autorização judicial, pois devidamente justificada pela fundadas razões referidas. 4. Habeas Corpus não conhecido." (HC 500.101/RS, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 11/06/2019, DJe 27/06/2019, grifou-se).
Entretanto, em exame mais acurado, percebe-se que o decisum merece reconsideração. Como se percebe dos fundamentos apresentados pelo Tribunal recorrido, as fundadas razões para o ingresso no imóvel teriam sido a natureza permanente do tráfico, denúncia anônima e a fuga do investigado ao avistar a Polícia:
"À sua vez também não vinga, por absoluta falta de amparo legal, a pretensão de anulação do auto de prisão em flagrante delito em decorrência da inexistência de mandado de busca para ingresso na moradia em questão, vez que o crime imputado ao paciente é de natureza permanente, a ensejar, pois, a dispensa do mencionado mandado, mormente diante do resultado da apreensão efetivada" (fls. 05/06 do writ n° 0018865-86.2014.8.26.0000). E a respeito, no mesmo sentido também se manifestou o douto e zeloso representante da Procuradoria de Justiça, a fl. 1122, ao asseverar que "(...) além de se tratar de crimes permanentes, ainda havia, sim, acentuada suspeita (denúncias anteriores; indiciado que tentou a fuga ante a presença policial; etc), ficando, 'ipso facto', permitida a prisão em flagrante (e-STJ, fls. 1136)
Em relação à tentativa de fuga do agente ao avistar policiais, deve-se salientar que, nos termos do entendimento da Sexta Turma deste Superior Tribunal de Justiça, tal circunstância, por si só, não configura a justa causa exigida para autorizar a mitigação do direito à inviolabilidade de domicílio:
"HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. FLAGRANTE. BUSCA DOMICILIAR. FALTA DE JUSTA CAUSA. NULIDADE DE PROVAS CONFIGURADA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. 1. Diz a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que a mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo paciente, embora pudesse autorizar abordagem policial, em via pública, para averiguação, não configura, por si só, justa causa a permitir o ingresso em seu domicílio, sem seu consentimento - que deve ser mínima e seguramente comprovado - e sem determinação judicial (HC n. 415.332/SP, Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe 21/8/2018). 2. Hipótese em que a invasão de domicílio pelos policiais se fundou tão somente no fato de o paciente ter adentrado rapidamente a sua residência quando avistou a viatura, o que não caracteriza elemento objetivo, seguro e racional apto a justificar a medida. 3. Ordem concedida para, reconhecida a ilicitude do ingresso dos policiais no domicílio do ora paciente, determinar o trancamento da Ação Penal n. 0000076-04.2017.8.26.0592, da Vara Criminal da comarca de Tupã/SP. (HC 435.465/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, Rel. p/ Acórdão Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 09/10/2018, DJe 09/11/2018, grifou-se)"
"HABEAS CORPUS. NULIDADE. CONDENAÇÃO. TRÁFICO DE DROGAS E ARTS. 12 E 16 DA LEI N. 10.826/2003. PRISÃO EM FLAGRANTE. BUSCA DOMICILIAR. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. ILICITUDE DAS PROVAS OBTIDAS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. EVIDÊNCIA. [...] 3. Na hipótese, os policiais franquearam a própria entrada no imóvel sem possuírem quaisquer indícios objetivos de que lá, no interior do domicílio, haveria a ocorrência de crimes. Apesar da conduta suspeita do paciente - abandonar a moto e empreender fuga diante da visualização da equipe policial -, ela, per si, não se apresenta como suficientemente idônea para denotar a fundada suposição de que estivesse ocorrendo a prática de infrações penais dentro da residência. 4. Ordem concedida para, reconhecida a ilicitude do ingresso dos policiais no domicílio do paciente, anular as provas obtidas a partir da busca domiciliar considerada ilícita e, consequentemente, a condenação proferida contra o paciente. Prejudicados os demais pedidos. (HC 364.359/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 19/02/2019, DJe 12/03/2019, grifou-se)
Deve-se frisar, ainda, que "a mera denúncia anônima, desacompanhada de outros elementos preliminares indicativos de crime, não legitima o ingresso de policiais no domicílio indicado, estando, ausente, assim, nessas situações, justa causa para a medida."
(HC 512.418/RJ, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 26/11/2019, DJe 03/12/2019.) Neste ensejo, vale destacar que em situação bastante semelhante à dos presentes autos, na qual se contou com "denúncia anônima" e fuga do morador após visualizar os policiais, a Sexta Turma desta Corte entendeu que, mesmo diante da conjugação de desses dois fatores, não se estaria diante de justa causa. Aquele Órgão julgador ressaltou a imprescindibilidade de prévia investigação policial para verificar a veracidade das informações recebidas: "PROCESSUAL PENAL E PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. TRÁFICO E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE ENTORPECENTES. CORRUPÇÃO DE MENORES. ENTRADA EM DOMICÍLIO SEM ORDEM JUDICIAL E SEM ELEMENTOS MÍNIMOS DE TRAFICÂNCIA NO LOCAL. PRISÃO PREVENTIVA ILEGAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS PROVIDO. 1. Ainda que esta Sexta Turma tenha admitido como fundamento para a prisão preventiva a relevante quantidade entorpecentes apreendidos em poder da paciente, tratando-se de 132 pedras de crack, 84 papelotes de cocaína e ainda 26 trouxinhas de maconha, não foi apontado nenhum elemento idôneo para justificar a entrada dos policiais na residência da paciente, citando-se apenas a verificação de denúncias de tráfico de drogas que receberam através do "Disque Denúncia", e a fuga do adolescente. 2. Verifica-se ofensa ao direito fundamental da inviolabilidade do domicílio, determinado no art. 5°, inc. XI, da Constituição da República, quando não há referência a prévia investigação policial para verificar a possível veracidade das informações recebidas, não se tratando de averiguação de informações concretas e robustas acerca da traficância no domicilio violado. 3. Recurso em habeas corpus provido, para a soltura da recorrente, TEREZA RODRIGUES, e de ofício determinar o trancamento da Ação Penal n. 0001783-23.2016.8.26.0695." (RHC 83.501/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 06/03/2018, DJe 05/04/2018; grifou-se).
Desta feita, entende-se que, a partir da leitura do Tema 280/STF, resta mais adequado a este Colegiado seguir o entendimento esposado pelo em. Min. Néfi Cordeiro, no RHC 83.501/SP, no sentido da exigência de prévia investigação policial quanto à veracidade das informações recebidas. Destaque-se não se está a exigir diligências profundas, mas sim breve averiguação, como, por exemplo, "campana" próxima à residência para verificar a movimentação na casa e outros elementos de informação que possam ratificar à notícia anônima. Assim, reconsidero meu voto, para, em juízo de retratação, dar provimento ao recurso em habeas corpus, de modo que que sejam declaradas ilícitas as provas derivadas do flagrante na ação penal n.º 0006327-46.2015.8.26.0224, em trâmite no Juízo da 4ª Vara Criminal da Comarca de Guarulhos/SP. Desde que não existam outras provas, o feito deverá ser trancado, com a expedição do competente alvará de soltura em favor do acusado, salvo se não estiver detido por outra razões. É o voto.
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